O início da mudança

Esta não é simplesmente uma justificação dos motivos que me levaram a praticar Karate. É também uma história sobre a minha transformação pessoal. Pois não só comecei a praticar Karate porque ocorreram mudanças na minha personalidade e na minha forma de entender o mundo e a vida, como a prática do Karate me trouxe também outras perspetivas da realidade. Esta é a história de como isso aconteceu e que poderá também ser semelhante à história de muitas outras pessoas que praticam Karate por este mundo fora.

Eu comecei a praticar Karate em outubro de 1996. Na altura era um jovem adolescente de 15 anos. O que me levou a iniciar a prática desta modalidade foi um conjunto de fatores que se articularam de forma singular nesta altura da minha vida, mas acima de tudo, surgiu de uma vontade tremenda que despontou da noite para o dia. Mas esta vontade levou algum tempo até culminar naquilo que me tornei hoje.

O Super-homem

Eu vivi a minha infância nos anos 80 e a adolescência nos anos 90. Estas décadas foram muito impactantes, não só em mim, mas, creio eu, em grande parte das pessoas que cresceram nesta altura, inclusive também nas décadas de 60 e 70, com o cinema a ter uma forte componente de motivação para a prática de artes marciais. É claro que eu fui fortemente influenciado por filmes de atores como Bruce Lee, Jean Claude Van Damme, Jackie Chan, Chuck Norris, Steven Seagal ou Ralph Machio, que interpretou Daniel Larusso, no filme Karate Kid (O momento da Verdade), mas talvez, o personagem que mais me fascinava no cinema, curiosamente, não era nenhum destes atores, era o Super-homem. Sim, é verdade, um super-herói da DC Comics, das histórias de banda desenhada, com umas cuecas vermelhas vestidas por cima da roupa. Eu gostava dos filmes protagonizados pelo ator Christopher Reeve. Na minha ingenuidade, eu pedia mesmo a Deus que me desse poderes para ser como ele, poder voar, ver através das paredes e ter uma força sobre-humana capaz de levantar camiões enormes e fazer o planeta girar ao contrário

Eu queira ser admirado pelo mundo inteiro por conseguir fazer justiça no planeta, fazer o bem, salvar os outros seres humanos do mal e repor a paz. Nada de especial para uma criança de 10, 11 anos que via muitos filmes. Talvez este desejo viesse da minha educação católica, onde o bem e o mal estão claramente definidos, conjugada com estas ideias emergentes desta geração, de que eu poderia ser um deus capaz de resolver todos esses problemas, e ser seguido e admirado por todos, mas com o estilo e a personalidade, desta que talvez seja uma das personagens mais importantes da cultura pop ocidental na segunda metade do século XX.

O despertar para a realidade

Quando eu era miúdo gostava de ir brincar com os meus amigos para um monte de brita que havia junto a uma fábrica de vigas próximo de onde eu morava. Os montes eram suficientemente altos para escorregarmos por eles, sentados em pedaços de cartão, chegando ao fim do dia cheios de pó, mas com um sorriso estampado no rosto de tanta diversão. Um dia, enquanto brincávamos num desses montes, uma criança, que teria talvez 6 a 7 anos, trepava umas estantes de ferro, já velhas e oxidadas, que se amontoavam perto do local onde brincávamos. Eram umas estantes de rolos, bastante pesadas, usadas para colocar tijoleiras de uma outra fábrica vizinha. Subitamente, quando a criança chegava praticamente ao topo de uma das estantes, esta tomba fortemente no chão, deixando a criança debaixo da estante, suportada apenas por um cepo que tinha no topo e que quase lhe esmagava o crânio. Por sorte, esse cepo deixou a estante inclinada na diagonal, o suficiente para evitar que a criança fosse esmagada pelo peso de todos aqueles cilindros de ferro.

Passados poucos segundos, um irmão mais velho, saía a correr em alvoroço, gritando e chamando pela mãe, e dizendo desesperadamente que o irmão estava a morrer. Mais vizinhos acorreram ao local, onde o irmão, a chorar e a gritar descontroladamente, fazia uma força descomunal para levantar a estante. Uma senhora, que chegou com uma enxada, conseguiu alavancar a estante e o irmão mais velho, com um golpe brusco puxou o seu pequeno irmão debaixo daquele pesadelo. Entretanto, já alguém tinha chamado os bombeiros. Naquele dia não havia ambulância e o pequeno foi levado para o hospital numa viatura todo-o-terreno de combate a incêndio. Por incrível que pareça, a criança até estava relativamente bem. Tinha vários pontos marcados nas costas, pequenas chagas vincadas pelas pontas dos rolos da estante, mas felizmente, não aparentava ter danos corporais muito graves.

No meio de todo aquele drama, durante o tempo em que decorreu aquele episódio, enquanto vi um irmão tentar salvar o outro com todas as suas forças, eu fiquei bloqueado e quieto sem mexer uma única pestana. Fiquei impávido e boquiaberto a comtemplar aquela situação, sem saber minimamente o que fazer. Nada, não fiz rigorosamente nada. Como podia eu querer salvar o mundo inteiro, ser um super-herói admirado por todos, se quando devia ter feito algo verdadeiramente heroico, eu não mexi uma única palha. Nessa noite, lembro-me de ter passado a noite acordado a pensar no que tinha acontecido, a sentir-me um verdadeiro inútil e covarde.

"Como podia eu querer salvar o mundo inteiro, ser um super-herói admirado por todos, se quando devia ter feito algo verdadeiramente heroico, eu não mexi uma única palha."

Este foi talvez um dos primeiros indícios da minha vida que me despertou para a realidade dura e crua, de que para sermos super-homens temos de nos tornar como tal, e não passar o tempo a desejar que esses poderes nos sejam oferecidos gratuitamente por uma qualquer divindade.

Para que eu não ficasse com dúvidas, a ironia do destino, dava-me conta que em 1995, Christopher Reeve era atirado de um cavalo, numa competição equestre e ficava tetraplégico. Afinal, nem o Super-homem era “super” e era afinal tão humano como qualquer um de nós. Todas estas fantasias começavam a desmoronar-se na minha cabeça e a vida encarregava-se de me mostrar que a realidade era muito diferente do que acontecia em Hollywood.

O Karate mesmo ali ao lado

Mesmo ao lado da casa onde cresci, com os meus avós, a minha mãe e o meu irmão, na Associação do Louriçal, havia aulas de Karate. Aliás, eu até já tinha experimentado praticar a modalidade, precisamente quando estas aulas começaram, em 1990, tinha eu 9 anos, mas desisti da modalidade passado pouco tempo.

Um dia, na minha cabeça começo a construir a ideia que precisava de fazer algo para me tornar mais forte, algo que me tornasse mais capaz, mais destemido, seguro e confiante, capaz de ajudar realmente a melhorar o mundo, mas agora de uma forma humanamente possível e alcançável. E é nesse momento, que tenho a súbita iluminação de voltar a praticar Karate. Como é que eu não tinha ainda percebido isto. As aulas de Karate eram mesmo ao lado da minha casa, só podia ser um sinal a dizer-me que era esse o caminho. Se treinasse afincadamente, durante o tempo suficiente, sem nunca desistir, eu seria capaz de dominar as técnicas e as habilidades acrobáticas, tal como todos aqueles atores demonstravam naqueles filmes de artes marciais. E aquilo sim, só podia ser verdade, aquilo não era um homem a ver através das paredes, a voar e a desviar misseis e foguetões com as próprias mãos, aquilo tinha de ser possível. Que mais sinais poderia eu querer do que ter as aulas de Karate mesmo ao lado de casa. Eu era, provavelmente, a pessoa que mais perto vivia do local onde decorriam os treinos.

Nessa noite mal dormi. A primeira coisa que disse à minha mãe quando me levantei foi que queria voltar a praticar Karate. Ela não ficou muito convencida com a ideia. Disse que eu já tinha praticado uma vez e tinha desistido e que o mais provável era voltar a acontecer. Fez questão de deixar claro que se eu quisesse realmente avançar com essa ideia, tinha de ser eu a pagar a mensalidade. Claro que eu nem hesitei. Na altura ela dava-me uma semanada, e eu costumava guardar algum dinheiro de parte, por isso se gerisse bem o dinheiro, conseguiria pagar. Além disso, no Verão costumava fazer alguns trabalhos durante as férias e arranjar mais algum dinheiro que podia usar para pagar as minhas despesas do Karate.

Logo que houve o primeiro treino depois de ter tomado esta decisão fui falar com o instrutor e dizer que queria começar a treinar. Na altura, a pessoa responsável pelos treinos no Louriçal era o Adérito. O Adérito era uma pessoa muito calma, bom instrutor e muito bom tecnicamente. Não havia muita gente a treinar nesta altura, talvez umas 12 a 15 pessoas e de entre todos, eu seria talvez um dos mais velhos do grupo, e também o único com um cinto branco. Quando saía dos treinos ia para casa e continuava a treinar, repetia tudo o que tinha feito no treino. Fiquei completamente obcecado pelo Karate.

Um dia, vim a descobrir um detalhe curioso no filme Karate Kid (O Momento da Verdade). Quando o Daniel San vai com o mestre Miyagi ao dojo Cobra Kai do John Kreese e decide inscrever o Daniel San no torneio All Valley Karate Championships, reparo, no cartaz afixado na parede do dojo, que a data do torneio é o dia do meu aniversário. Por um lado, a vida tentava mostrar-me que devia descer à Terra e colocar as ilusões do cinema e as fantasias de parte, mas por outro, coincidências inacreditáveis, faziam-me acreditar que tudo estava destinado, era por aqui o caminho.

Receber de volta

E assim foi, continuei que nem um louco a tentar aprender e treinar Karate com tudo o que tinha ao meu alcance. Ia a todos os treinos e não faltava a um único estágio organizado pela associação à qual pertencia, na altura o Instituto Karate Coimbra (IKC-ARC), conduzida pelo ainda Diretor Técnico, o Sensei José Luís Miranda. Na altura não havia internet, nem os recursos que existem hoje, mas por intermédio de um amigo, descobri a revista Cinturão Negro. Comecei a comprar todas. Lia e via tudo o que conseguia encontrar sobre artes marciais, mesmo os conteúdos que não eram sobre Karate. Um dia, um colega de treino comprou uma cassete VHS com os vídeos dos katas Heian Yondan, Godan e Tekki Shodan, realizados pelas lendas da JKA, Osaka, Kagawa, Ogura, Yahara, entre muitos. Na altura, como precisava do dinheiro para pagar as mensalidades não quis comprar nenhuma para mim e, por isso, pedi-lhe a cassete emprestada. Com ajuda de outro colega, consegui arranjar dois gravadores VHS e fiz uma cópia (não façam estas coisas, até porque já não se fazem cópias de VHS), que vi e revi vezes sem conta, sempre o mesmo vídeo. Ainda hoje tenho essa cassete.

Um dia, descobri que o pai de uma ex-namorada tinha um livro de Karate. Chamava-se Karate e Zen, de Ruy de Mendonça. Pedi-lhe o livro emprestado e o que mais fascinou não foram as gravuras com as técnicas, ou as explicações sobre o Karate e a sua história. Já tinha lido essas coisas noutros documentos, livros e revistas. Foi o Zen. A descoberta do Zen coincidia um pouco com o desvanecimento das minhas convicções católicas e caía que nem uma luva na procura de um sentido para vida, numa alternativa mais realista e convincente para uma vida mais equilibrada e focada em dependermos de nós próprios para trilharmos o nosso caminho. O livro tinha, inclusive, excertos de poemas de Fernando Pessoa e do seu heterónimo Alberto Caeiro que me deixaram verdadeiramente fascinado. Durante os anos que se seguiram li vários livros sobre Zen e procurei entender mais sobre esta prática. O Zen contribuiu também para equilibrar um pouco a minha obsessão pelo Karate e assentar um pouco mais os pés na terra.

Depois do Super-homem e com o início do Karate, muitas ilusões permaneceram na minha cabeça durante alguns anos. Ao longo do tempo, tive a oportunidade de continuar a evoluir na arte. No início fui seguindo os caminhos que me eram mostrados, depois fui trilhando os meus próprios caminhos. Treinei com bastantes mestres, fiz imensos amigos e, felizmente, continuo a fazer amigos e a conhecer pessoas extraordinárias. Fiquei desiludido com muita coisa que fui vendo ao longo do caminho. Nem tudo era assim tão épico e grandioso como tinha imaginado. Percebi que afinal muitos continuam a viver ilusões, não muito diferentes das que eu tinha com o Super-homem. Mas ir percebendo a realidade também me deu imenso gozo, mesmo quando esta não é a que desejaríamos. Fiz-me homem no Karate, e acredito que também contribuí e continuo a contribuir para que a modalidade continue.

Esta é a história que me trouxe até aqui. O início da paixão e dos pilares fundamentais que esta modalidade me trouxe. Muitas coisas aconteceram pelo caminho, mas quem sabe, poderão ser motivo de outras histórias.