Capa: Uma das ruas que percorria diariamente para chegar ao Honbu Dojo.
Chegar a casa
Cheguei ao aeroporto de Narita ainda antes das 13 horas do dia 10 de junho, depois de uma viagem de 22 horas com escala em Abu Dhabi. O senhorio da share house onde iria ficar, informou-me que só estaria em casa para me receber até às 19 horas, porque depois disso iria ter de se ausentar. À partida teria imenso tempo, mas cedo percebi que não era assim tanto como imaginei.
Demorei imenso tempo, entre passar no balcão de imigração e levantar a bagagem, pois tinha imensa gente à frente e ainda era necessário preencher as declarações para a alfândega. Quando consegui, fui levantar um cartão SIM que tinha reservado para ter dados moveis durante a minha estadia em Tóquio, mas também tive alguma dificuldade em encontrar o balcão para o levantamento do cartão. Acabei por encontrar o balcão, levantei o cartão e instalei-o, mas não era assim tão simples. O cartão podia levar até 24 horas a ficar ativo, e por isso, o mais provável, era ter de seguir até à share house sem internet. De qualquer forma, dar com um sítio sem ter net não era nada que nunca tivesse feito, ou não tivesse sido assim que toda humanidade sobreviveu até aos dias de hoje.
O problema é que ainda não estava tudo. Ainda tinha de trocar euros por ienes japoneses, para poder pagar o primeiro mês de renda na share house, adquirir um cartão Suica para poder andar nos transportes públicos em Tóquio e comprar um bilhete de comboio para chegar ao centro de Tóquio, e tinha de ser em dinheiro, porque não aceitavam cartão. Eu tinha planeado trocar o dinheiro apenas em Shinjuku, no centro de Tóquio, pois conseguia um câmbio mais favorável, e ainda estamos a falar de valores simpáticos. Mas tive de trocar uma parte no aeroporto para conseguir o Suica e o bilhete de comboio.
Depois de conseguir resolver estas primeiras etapas para poder sair do aeroporto, aproveitei o WiFi do comboio para planear os próximos passos. Fiz alguns print screen da estação onde precisava de sair do comboio e apanhar o metro e assim consegui chegar a Shinjuku onde deveria trocar o dinheiro que ainda me faltava. Mas a estação de Shinjuku é enorme e claro, levei imenso tempo a encontrar a saída indicada e dar finalmente com a casa de câmbio para trocar o dinheiro. Mas finalmente consegui. Restava-me agora chegar à share house.
Eu não tinha trazido nenhum mapa nem pesquisado nada sobre as linhas metro quando planeei a viagem. Estava a contar ter internet quando chegasse a esta fase, mas não foi bem assim que aconteceu. Lembrei-me de ter andado na Marunouchi line, da última vez que tinha estado em Tóquio, em 2017 e percebi que havia uma estação que deveria ficar a pouco mais de 1 km a pé do meu destino. Mesmo que houvesse uma opção que me deixasse mais perto, pela menos esta era mais segura, e assim fiz. Saí na estação de Yotsuya-Sanchome, a terceira estação depois de Shinjuku, e segui para a rua, para a minha derradeira caminhada até chegar aquela que seria a minha casa nos próximos 3 meses, carregado com a minha mochila com cerca de 7 kg e a minha mala de viagem com pouco mais de 22kg. Depois de uma caminhada bem suada, feita em passo rápido, finalmente tive a oportunidade de conhecer o simpático e sempre disponível, Hashimoto San, mais conhecido por Hassy, administrador do MBA Ichigawa. Já eram quase 18 horas, mas fiquei contente por ter chegado antes da hora limite.
Viver numa share house
Eu falei com o Hassy pela primeira vez ainda em Portugal, numa reunião que fizemos online para ele me mostrar a casa onde eu iria ficar durante estes 3 meses. Simpatizei logo com ele e fiquei bastante entusiasmado por vir para esta casa. Quando cheguei a casa, vivam lá 7 pessoas, todos eles japoneses. De entre eles apenas uma pessoa era uma mulher, a Ayumi San. Agora tinham, pela primeira vez um português e daí a umas duas semanas iria chegar o Alberto, um jovem italiano, com quem haveria de conversar imenso durante a minha estadia.
A casa era um pouco antiga, mas agradável, limpa, organizada e acolhedora. Tinha um espaço comum que incluía a cozinha com sala de jantar e de estar. Oferecia todas as condições necessárias e indispensáveis para ter uma vida tranquila e sem grandes perturbações. Todos os residentes eram bastante simpáticos e atenciosos, mas também discretos, organizados e respeitadores do espaço de cada um. A primeira pessoa que conheci além do Hassy foi o Taguchi San, um ex-lutador de boxe, talvez de todos o mais distraído, mas sempre bem-disposto e de bom coração, que um dia me salvou de ter de dormir na rua. Não podia ter escolhido melhor sítio para viver durante esta aventura em Tóquio e sinto-me muito grato por todos os momentos que pude partilhar com estes colegas e pela oportunidade que tive em poder habitar nesta casa.
Mesmo ao lado do MBA Ichigawa, a cerca de 40 metros, tinha um pequeno supermercado, com imensos produtos frescos e que foi o principal ponto de abastecimento para a minha alimentação e necessidades diárias. Era muito conveniente, e logo no dia em que cheguei o Hassy foi comigo às compras. Emprestou-me um saco para as compras que utilizei durante toda a minha estadia e mostrou-me onde estavam todos os produtos no supermercado.
Para concluir o final deste primeiro dia em beleza, ao final de algumas horas, consegui ter acesso aos dados móveis no meu telemóvel. Já tinha net e um número de telemóvel japonês.
A primeira semana
No dia depois de ter chegado, fui pela primeira vez ao Honbu Dojo da JKS, em Nishiwaseda. A casa onde eu estava ficava a 30 minutos a pé do dojo, cerca de 2,5 quilómetros. Para ir e vir do dojo, a maior parte das vezes fiz este percurso a pé. Instalei uma aplicação para poder alugar bicicletas, a LUUP, e por vezes cheguei a fazer o percurso de bicicleta, mas para poupar algum dinheiro, limitei esse transporte a apenas algumas vezes por semana.
Cheguei ao Honbu Dojo bastante cedo. O treino começava às 10:30, mas eram 9:45 quando cheguei. Tive de esperar um pouco, mas na receção foram muito simpáticos comigo. O Sensei Matsue veio ter comigo e deu-me um cartão com o qual pude entrar no edifício à vontade durante toda a minha estadia. Já no átrio à entrada do dojo, o Anis veio ter comigo e cumprimentamo-nos efusivamente.
Em Portugal, sempre pude contar com o Anis para colaborar comigo na resolução de todas as questões administrativas com a JKS. E no Japão não foi exceção. Foi um amigo e uma pessoa de grande confiança, que sempre me transmitiu conselhos muito válidos e uteis, não só para que pudesse desfrutar de uma estadia agradável, mas também, para usufruir dos treinos de uma forma saudável e produtiva.
Quando chegou a hora fiz o meu primeiro treino. Éramos apenas seis praticantes, eu, um jovem iniciado e quatro senhoras. O treino foi orientado pelo Sensei Toyama. Foi um treino bastante intenso, onde fizemos Kihon, Kata e Kumite. No final do treino cruzei-me com outros instrutores, os Senseis Makita e Yamaguchi que gostei imenso de rever e cumprimentar, mas vi também os Senseis Watanabe e Kagawa Hideyoshi. Todos eles iam ter treino de instrutores logo a seguir a nosso treino.
Depois do treino fui almoçar com o Anis. Fiz-lhe imensas perguntas para tentar perceber como as coisas funcionavam por ali. Falámos da JKS Portugal e também dos motivos que me tinham trazido ali. Foi um almoço agradável e um bom início de integração no ambiente do Honbu Dojo.
Durante esta primeira semana fiz apenas os treinos durante a manhã. Nos primeiros dias, principalmente durante a tarde, senti alguns efeitos do jet lag, como alterações do sono e alguma ansiedade, que me deixaram um pouco desconfortável. Aproveitei as tardes descansar e para finalizar algumas tarefas que tinha ficado de concluir relativas ao meu trabalho. Durante as noites tive muita dificuldade em dormir bem e demorei talvez uns 4 dias até conseguir normalizar o meu sono.
"As aulas da manhã eram compostas por grupos pequenos, entre 4 a 8 pessoas e grande parte dos praticantes eram senhoras, muito simpáticas e dedicadas. O ambiente era bastante tranquilo e motivador, com muita entrega e dedicação ao treino."
Ainda assim, nesta curta semana, apenas com 4 treinos, treinei ainda com os Sensei Inada, Kanayama e Arimoto. Em dois desses treinos fizemos tube training. Um treino onde usamos tubos de borrachas compridos, semelhantes a câmaras de ar de bicicleta para criar resistência na execução das técnicas. São treinos geralmente bastante duros e extenuantes. As aulas da manhã eram compostas por grupos pequenos, entre 4 a 8 pessoas e grande parte dos praticantes eram senhoras, muito simpáticas e dedicadas. O ambiente era bastante tranquilo e motivador, com muita entrega e dedicação ao treino.
Uma das meninas sempre presentes no treino era a Sophia. A Sophia Hashimoto é uma jovem adolescente, bonita, alegre e muito conversadora, que deveria ter uns 16 anos. A um primeiro olhar, qualquer um diria que a Sophia seria apenas uma japonesa bastante sociável, algo não muito típico para uma japonesa, mas depois de a conhecermos melhor, percebemos que afinal a Sophia era uma cidadã norte americana, cujo pai é japonês. A Sophia tem família a viver em Tóquio e veio passar as suas férias também a treinar no Honbu Dojo da JKS. Planeava ficar durante um período muito semelhante ao meu e, além de mim e mais um ou outro japonês, era talvez a pessoa mais regular nos treinos. Sempre muito empenhada e preocupada com os detalhes, com uma expressão sorridente e um espírito muito positivo, a Sophia ajudou-me imenso a adaptar-me às rotinas do Honbu Dojo. Traduziu-me imensas coisas que não sabia e sobre as quais lhe ia pedindo ajuda. Estava sempre preocupada com o bem-estar de todos e sentia-se claramente, que no Honbu Dojo, dos instrutores aos praticantes, todos gostavam imenso da Sophia. Foi sem dúvida uma pessoa muito importante para mim e sinto-me muito grato por ter tido a oportunidade de a conhecer e de poder partilhar os vários treinos que fizemos juntos.
No final da semana, para terminar em grande, encontrei-me com um amigo, o Zé Pedro. O Zé Pedro, é de Coimbra, veio para Tóquio em fevereiro deste ano para treinar na Universidade Teikyo, onde o Sensei Kagawa dá treinos e onde treinam também competidores de elite do Japão, como o conhecido Moto Kazumasa e o irmão Moto Ryuji. O Zé Pedro é também um competidor de elite em Portugal, e para alguém como ele, apaixonado pelo Karate desde criança, não podia ter escolhido melhor local para poder continuar a evoluir e a dedicar-se ao Karate.
Combinámos encontrar-nos em Ayase, no Tóquio Budokan para a assistirmos a um torneio de Karate. O Zé Pedro estava com bons amigos, que tive a oportunidade de conhecer e conviver. Foi fantástico poder reencontrá-lo, falar português com alguém e poder passar o dia com alguém que vive o Japão e o Karate de forma tão efusiva. Conversámos bastante e partilhamos imensas ideias e experiências. Foi sem dúvida um dos pontos altos da minha primeira semana.
As rotinas
Nas semanas seguintes a minha vida começou a seguir algumas rotinas. Além dos treinos da manhã no Honbu Dojo comecei também a fazer os treinos ao final do dia. Fui aumentando gradualmente o volume de treino até fazer entre 13 a 16 horas por semana. Além dos treinos fazia as caminhadas de e para o Dojo, sempre debaixo de um calor abrasador e de uma humidade bastante desconfortável. Quando fazia as viagens todas a pé, perfazia um total diário de 10 km, mas por vezes cedia ao cansaço e lá pegava uma bicicleta, pois as minhas pernas começavam a acusar alguma fadiga.
Havia treinos de segunda a sábado e ao fim de duas semanas já tinha treinado com todos os instrutores do Honbu Dojo. Com alguns deles, nunca tinha tido oportunidade de treinar com eles anteriormente, mas todos foram muito simpáticos e cordiais, sem nunca deixarem de ser exigentes, e todos eles me transmitiram imensos conteúdos valiosos e importantes para a minha evolução no Karate. Os treinos eram sempre muito intensos e exigentes, e logo ao fim das primeiras semanas comecei a sentir o impacto no meu corpo, com dores nas articulações, principalmente nos joelhos e tornozelos e pequenas lesões musculares, cujas dores aliviei com recurso a anti-inflamatórios que tinha trazido. Felizmente consegui manter-me a treinar com regularidade, sem lesões de maior gravidade, procurando sentir e reconhecer os sinais que o meu corpo me ia dando, de forma a gerir o volume de treino sem comprometer a minha saúde e os meus objetivos.
Antes dos treinos, ao final do dia, falava com a minha família online. Tinha oportunidade de ver a minha mulher e os meus filhos, conversar um pouco com eles e acompanharmos as nossas vidas e as novidades que iam surgindo durante estes tempos. Eram momentos que me davam força para continuar a cumprir os meus objetivos, mas também me traziam saudades e vontade de estar com eles.
Aproveitar cada dia
Entre os treinos e as caminhadas, grande parte dos meus dias eram passados no meu pequeno quarto da share house. Para uma estadia de 3 meses em Tóquio, sem vencimento, mas com imensas despesas para pagar, desde a renda à mensalidade no dojo, alimentação e transportes, eu tinha de gerir cuidadosamente as minhas finanças, não fosse eu chegar a uma altura da minha estadia e ter de ir mendigar para poder comer.
Assim, enquanto estava em casa aproveitava para concretizar e materializar outros projetos e tarefas que tinha pendentes. Um desses projetos passou por concluir o site da escola de Karate do Louriçal. Já tinha este assunto pendente há bastante tempo e não podia ter havido melhor altura para o concluir. De mão dada com o site surgiu também a ideia de fazer este blog, para que pudesse, não só ficar com um registo publico desta aventura como também ser um ponto de partida para a publicação de histórias futuras e passadas, acrescentado valor ao site e ao nosso clube.
Aproveitei também os dias para estudar japonês, pois foi também uma das principais motivações para realizar esta viagem e claro, tive ainda tempo para ler, ver alguns documentários e realizar muitas outras tarefas interessantes e produtivas.
Também saí de casa, como é natural. Aproveitei os domingos para ir conhecer Tóquio um pouco melhor, tendo passeado por outros bairros como Akihabara, Shinjuku, Shibuya, Ueno, onde visitei o Zoo. Fui algumas vezes a um Sento, localizado relativamente próximo de casa, onde aproveitava para relaxar, principalmente ao sábado, depois de terminar a semana de treinos. Visitei templos e museus e conheci um pouco da vida urbana, eclética e organizada desta metrópole gigantesca e tão singular.
Depois dos domingos a rotina regressava. Caminhava para o dojo e transpirava mais um pouco, passo a passo, adaptava-me gradualmente e melhorava o meu desempenho discretamente a cada novo dia.
Rui Silva
O Rui Silva é instrutor de Karate no Louriçal desde 2005. Iniciou a prática da modalidade em outubro de 1996 e é atualmente 5º Dan de Karate Shotokan. Gosta de ensinar, ler e escrever sobre Karate e já participou e treinou com vários mestres de grande renome internacional. Além de ser instrutor, gere também a parte administrativa da Secção de de Karate da Associação do Louriçal, bem como este o site.