Foto de capa retirada de: News & Events – Rest of the world (uechiryu.eu)
Explicar a um leigo
Quando falamos com um leigo sobre Karate e temos necessidade de explicar como funcionam as estruturas associativas no Karate, acho que qualquer um passa por tamanha dificuldade, que ficamos sempre com a sensação (ou mesmo com a certeza) de que o nosso interlocutor ficou sem perceber nada de como as coisas funcionam. Aliás, eu diria mesmo, que a maior parte dos praticantes também não sabe como funcionam as organizações no Karate.
Dividir para governar
Sempre tivemos a necessidade de criar grupos, e a verdade é que em grupo conseguimos sempre alcançar objetivos mais ambiciosos do que se trabalharmos individualmente. Mas à medida que os grupos vão crescendo, crescem também os desentendimentos e a diferença de opiniões entre os membros de um grupo e, por isso, começam a criar-se grupos dentro dos grupos que, muitas vezes podem até entrar em rutura com o grupo original e criar um novo grupo. No Blog de Christopher Allen, Life With Alacrity, encontramos alguns artigos que explicam muito bem esta dinâmica de funcionamento dos grupos e como nos relacionamos de acordo com a dimensão de cada grupo.
No fundo é esta dinâmica que afeta também o Karate e a sociedade em geral. A questão é que no Karate existem mesmo imensos grupos. Tantos que poderá inclusive não ser saudável para a modalidade. Cheguei várias vezes ouvir dizer e ler em artigos, que este era um dos principais motivos para o Karate não ser olímpico. Mas não querendo agora discutir se o Karate deverá ou não ser olímpico, gostaria sim, de explorar a questão de tantas divisões e da existência de tantas organizações no Karate.
Medir para saber
Embora não seja pretensão deste artigo discutir o Karate desportivo, na minha opinião, se apenas existisse Karate desportivo, creio que não existiriam tantas divisões no Karate. Penso que as divisões surgem precisamente no Karate, convencionalmente designado por tradicional. O Karate, felizmente, deixou de ser necessário enquanto arte marcial para defesa pessoal dos indivíduos. Assim, deixou de existir uma indicador mensurável da eficácia das habilidades de um determinado praticante. Os praticantes exclusivos de Karate tradicional medem atualmente a sua qualidade através dos seu níveis de graduação, dos Kyus e dos Dans, mas o problema é que os requisitos para alcançar estes níveis são cada vez menos homogéneos, menos rigorosos, ou mesmo duvidosos. Supostamente dois praticantes com uma graduação de 3º Dan deveriam, à partida, ter habilidades técnicas e uma eficácia bastante semelhantes, mas isto não acontece.
Diferentes mestres de Karate têm diferentes níveis de exigência em relação aos seus praticantes. Esta prática cria uma disfuncionalidade grande no Karate, pois muitos praticantes criam ilusões relativamente à sua qualidade, relativamente à qualidade do seu mestre e relativamente à qualidade de outros praticantes. Nenhum ego se sente reconfortado com a ideia de que o nível alcançado com tanto esforço seja afinal inferior ao que deveria ter na realidade. É difícil aceitar que afinal não se é assim tão bom. Afinal de contas vivemos dias em que nos dizem para acreditarmos em nós mesmos, para sentirmos orgulho de nós próprios porque somos tão capazes como os outros. Sim, talvez sejamos capazes, mas por vezes atalhamos no alcance da nossas competências. Criamos um desfasamento entre aquilo que achamos que sabemos e aquilo que realmente sabemos.
Virar para fora
Não é fácil ter os pés assim tão bem assentes na terra. Ninguém está livre de se ver preso nessa teia. Mas a verdade é que, a minha opinião, é isso que nos levas às roturas entre os grupos. Já que o consenso relativamente à minha qualidade não é unânime, eu crio o meu grupo, com aqueles que me seguem e à minha ideologia, e assim tenho por parte dos mesmos um retorno positivo. Pelo menos até algum deles começar a pensar diferente e a achar que também pode levar alguém com ele para formar outro grupo.
Se todos praticamos a mesma modalidade, porque havemos de estar sempre a criar tantas divisões? É suposto o nosso objetivo ser comum, é suposto querermos todos o mesmo. Mas na verdade, não vejo mal algum nas divisões. Numa entrevista ao Sensei Asai Tetsuhiko, na Shotokan Magazine, Ed. 87, quando deixou a JKA, terá dito algo como, “O mundo é demasiado grande, porque havemos de estar junto de pessoas que não conhecemos ou com quem já não nos damos?”. Nós temos essa liberdade e claro que devemos seguir o nosso caminho, tornar-nos autónomos, mas será que não o conseguiríamos todos num único grupo? Se as divisões existem então talvez seja porque devem existir, mas então pelo menos que elas não nos deixem perder a noção da realidade, que elas não sirvam para criar barreiras entre os praticantes mas sim para enriquecer a modalidade, contribuindo cada uma com aquilo que cada uma tem de melhor.
"O mundo é demasiado grande, porque havemos de estar junto de pessoas que não conhecemos ou com quem já não nos damos?"
Asai Tetsuhiko
As associações são hoje um pilar fundamental no modelo em que o Karate se encontra estruturado e nem sequer vale a pena imaginar o Karate sem elas. Mas elas devem ser o garante da evolução da modalidade, devem permitir formar homens mais úteis, mais preparados para os desafios da sociedade. Devem virar-se para fora, para crescerem de forma saudável e não para dentro criando pequenos mundos de homens e mulheres iludidos. Desmoronar os castelos onde vivem os nossos egos pode ser muitas vezes doloroso, frustrante e devastador, mas podem também ser altamente recompensador e verdadeiro. Tenho a certeza que nunca nos disseram que o Karate era fácil.
Rui Silva
O Rui Silva é instrutor de Karate no Louriçal desde 2005. Iniciou a prática da modalidade em outubro de 1996 e é atualmente 5º Dan de Karate Shotokan. Gosta de ensinar, ler e escrever sobre Karate e já participou e treinou com vários mestres de grande renome internacional. Além de ser instrutor, gere também a parte administrativa da Secção de de Karate da Associação do Louriçal, bem como este o site.