Uma arte marcial
O Karate é uma modalidade para todos. Embora esta frase possa parecer um cliché, a verdade é que o Karate, atualmente, é uma modalidade que pode mesmo ser praticada por todo o tipo de praticantes. Mas nem sempre foi assim. O Karate, tal com muitas outras modalidades de combate, é uma arte marcial, e como tal, foi criada com o objetivo de garantir a defesa dos indivíduos, usando alguma forma de violência, ainda que de forma inteligente e trabalhada, e por esse motivo, não era para ser praticada por todas as pessoas, particularmente, por crianças.
Em 1972 foi publicado o Decreto-Lei n.º 105/72, de 30 de Março, atualmente já revogado, que pretendia estabelecer uma série de requisitos com vista a garantir a segurança dos cidadãos, relativamente ao ensino e à aprendizagem de artes marciais. Isto significava que os detentores deste tipo de conhecimentos estavam na posse de algo que poderia ser considerado um risco para segurança de outros cidadãos. Claro que hoje também existem regulamentos que regulam o funcionamento das artes marciais, mas não com base nos mesmos pressupostos. Agora, todos os cidadãos, incluindo crianças e praticantes com incapacidades físicas e intelectuais, são protegidos relativamente à segurança das infraestruturas de ensino, à qualificação dos instrutores, e todo um outro conjunto de requisitos, mas que nada têm a ver com a perigosidade dos instrutores ou praticantes terem conhecimento do método de combate por eles praticado.
Um mundo melhor
Os tempos mudaram muito, e embora muitos possam pensar o contrário, a verdade é que hoje já não existe a violência de outrora. As pessoas não precisam de praticar artes marciais para poderem sair à rua sem medo de serem agredidas e precisarem de utilizar as suas habilidades técnicas. Segundo Hans Rosling, autor do livro Factfulness, nos Estados Unidos, o número de crimes registados diminuíram de 14,5 milhões em 1990 para 9,5 milhões em 2016. Nós é que temos um percepção errada dos números, até porque muitas vezes eles não nos são fornecidos, apenas as notícias isoladas dos casos de violência.
"As pessoas não precisam de praticar artes marciais para poderem sair à rua sem medo de serem agredidas e precisarem de utilizar as suas habilidades técnicas."
Mas o Karate evoluiu, e evoluiu muito, na minha opinião. Tornou-se mais atlético, mas rápido, com uma forma mais perfeita e uma execução mais cuidada, mais saudável e até talvez mais correta do ponto de vista da biomecânica. Porém, talvez tenha ficado menos duro do ponto de vista do impacto e do contacto com o oponente. Talvez se tenha perdido alguma eficácia no que diz respeito à capacidade de proteção do individuo, ou seja, relativamente à sua função original que era a de proteger o individuo das agressões de terceiros. Digo talvez, porque muitos não concordam com esta abordagem. Muitos acreditam ainda praticar um Karate marcial, mas honestamente, são já raros os que o fazem, e provavelmente, a maioria dos indivíduos que acreditam nisso já não faz nem uma coisa nem outra, vivem apenas iludidos com o cinto que lhe segura as calças.
Mas ainda assim, mesmo com as falhas que ainda possam existir na modalidade, o Karate é sem dúvida uma modalidade que contínua em constante evolução. Uma excelente evidência disso mesmo é que agora o Karate é para todos, para as crianças, para os idosos, para todos os géneros, para os que têm mobilidade reduzida e para os incapacitados. No caso particular das crianças, muitas delas vêm recomendadas por médicos e terapeutas. São por vezes crianças com problemas de hiperatividade, défices de atenção, preguiça e falta de educação. E sim claro, o Karate também é para elas, mas se calhar também devia ser para os pais deles, ou para aqueles que acham que estas crianças precisam do Karate.
Treinar com paixão
Por mais benefícios que esta perspectiva traga, não só a estes praticantes, como à carteira dos instrutores que os ensinam, confesso que não gosto desta forma, cada vez mais frequente, de olhar para o Karate, como se fosse apenas uma terapia ou um tratamento. É suposto o Karate ser praticado com paixão, porque se quer desfrutar da prática, porque se quer aprender uma arte marcial, pelo próprio gozo que a mesma dá a quem a pratica, porque se quer ser um bom atleta e praticante e também porque se fazem bons amigos e conviver com eles. No fundo, o mesmo que leva toda a gente a praticar qualquer outro desporto. Olhar para o Karate como uma receita para curar os problemas de uma sociedade que não tem tempo para educar os seus filhos, parece-me uma visão muito estreita e limitada, pois o Karate é muito mais do que isso.
Como orgulhoso que sou por praticar a modalidade, não posso deixar de manifestar que acredito que efetivamente o Karate pode ajudar estas pessoas, mas muitas delas não vão chegar a praticar o tempo suficiente para sentirem essa ajuda. Como é óbvio não é uma responsabilidade nem da modalidade nem de quem a ensina desempenhar essa tarefa. Por isso o importante é não vivermos iludidos. O Karate é efetivamente para todos, mas é importante perceber que não vão todos percorrer o mesmo caminho, nem todos vão ser bons, nem todos vão ser maus, mas eu diria que isso é que é a beleza do Karate, é essa crueza que nos desperta e acorda para a realidade.
Rui Silva
O Rui Silva é instrutor de Karate no Louriçal desde 2005. Iniciou a prática da modalidade em outubro de 1996 e é atualmente 5º Dan de Karate Shotokan. Gosta de ensinar, ler e escrever sobre Karate e já participou e treinou com vários mestres de grande renome internacional. Além de ser instrutor, gere também a parte administrativa da Secção de de Karate da Associação do Louriçal, bem como este o site.